Estava na sala de espera do meu analista quando encontrei Clandestinidad. O título logo chamou minha atenção porque tocava no ponto exato sobre o qual falava naquela maratona analítica em que me encontrava. Comecei a ler imediatamente, mergulhei na intensidade da história, mas sobretudo numa curiosidade sobre o personagem principal, aquele que pelo menos para mim, encarnava o clandestino.
Li o livro a mais de 6 anos enquanto aguardava minhas sessões de análise naqueles dias, e nunca mais o tive em minhas mãos, e por isso, realmente, só me sinto habilitada em dizer sobre o que ficou para mim depois deste tempo da sua leitura e também sobre o quanto ele foi decisivo para aquele momento de minha análise.
A história contada se passa na ditadura argentina. Conta certos detalhes das escusas operações realizadas nesse período. E eu me lembro de ler uma descrição factual tão desalojada do campo do afeto político que me permitia entrar na história quase sem horror e angústia. O que em contrapartida gerava uma certa estupefação em perceber esse efeito do livro sobre mim.
O personagem principal, um motorista, um faz-tudo, não me recordo bem, que trabalhava para a ditadura, sua maneira de agir, sua relação com a vida, com os outros, com os afetos, com as ordens, me fazia pensar, a partir de um certo cacoete psicanalítico, que só podia se tratar de um sujeito psicótico. Me parecia, aliás, uma descrição perfeita de um sujeito de estrutura psicótica. Uma verdadeira aula sobre o assunto.
Esse foi um dos pontos tocantes para mim naquele tempo de análise. Naqueles dias de minha leitura eu tinha uma certeza sobre essa interpretação, de que se tratava, o personagem principal do livro, de um sujeito psicótico, na medida em que encarnava um verdadeiro clandestino e uma verdadeira capacidade de se fazer invisível. Uma capacidade que, como neurótica, me parecia impossível. Naquela época concluí que a divisão na neurose leva a uma certa impossibilidade de fazer qualquer coisa perfeitamente. Então, minha fantasia de invisibilidade, que funcionava para o bem e para o mal – como acontece no campo do gozo, caiu.
Depois de tanto tempo, não sei se continuaria apostando nessa certeza sobre a estrutura psicótica do personagem. Fiquei pensando que essa identidade do personagem toca no que conhecemos como “banalidade do mal”. Aquele fazer, cumprir certas ordens, estar a serviço de alguma coisa, que se houvesse ali um sujeito dividido, alguém minimamente implicado em seu ato, não seria realizado tão facilmente como transparece.
Creio que é um tema importante para debate nos dias atuais, nos quais estamos vendo aí a explicitação diária desta banalidade do mal. Às vezes vemos nela os rastros do gozo, da violência, da agressividade, do gosto pelo assujeitamento do outro e de seus modos de gozo. Mas outras vezes, me parece, vemos um discurso tão vazio de afetos, colocado a partir de uma debilidade, desde um lugar que não conseguimos localizar um sujeito naquele que diz ou faz.
Muitos de nós estamos aflitos pelos acontecimentos contemporâneos que nos remetem àqueles tempos sombrios contados no livro. Estamos na beira deste precipício? É possível ainda apostar na divisão do sujeito que pode se defender de estar a serviço da banalização do mal?